terça-feira, 27 de outubro de 2009

Conto: Momentos Assim... (Capítulo 3)






Sebastiana achava tudo normal, enquanto eu a achava cruel e fria e tinha medo de uma pessoa que matava cantando. Enfim, pedaços para todos os lados: coxinhas, pezinhos, etc. E, numa tigela de porcelana verde, ali estava tripinhas e afins. Sacrifício feito, sonho quase concluído; vamos ao cozinhado. Sebastiana reservou numa panela de barro a porção que seria o almoço dos adultos. Pegou as vísceras, os presentinhos que nos deu para o cozinhado, limpou, tratou, esvaziou as tripinhas, passou limão, vinagre, deixou num molho acre. Depois, não sei quanto tempo, lavou tudo, colocou todos os temperos. Fez ali no terreiro um pequeno fogo, menor que aquele que ela fazia na casa dela, pois tratando-se da panelinha, tudo seria no diminutivo. Senti-me uma dona de casa. Fazíamos ali eu e Mariinha, nome que criei agora, pois não agüento mais citar uma pessoa sem nome, nosso primeiro cozinhado. Surgia daquela panelinha, um cheiro maravilhoso de galinha caipira, era um misto de pimenta-do-reino, alho e cebolinhas. Hummm... o manjar estava a caminho. Sebastiana, volta e meia, vinha até nós. Na verdade o que eu queria mesmo era mexer na panela, coisa que ela não deixava. Queria repetir o gesto dela, tomar o caldinho sem dividir, mas ela não deixava. Eu me socorria com um pensamento: “Quando estiver pronto não dou. Feijão dela; galinha minha”. Grande engano meu, Sebastiana foi quem mais comeu.


Enquanto a galinha cozia, eu e Mariinha, entretidas no quintal, varríamos a casinha, com uma vassoura feita de cacho de coqueiro (ou palha, se não me engano). Preparávamos a casa para a festa, a casa que já citei: um canto debaixo do cajueiro, varrido, aquele incenso natural vindo das flores que às vezes eu amassava só para sentir o cheiro. Coloquei sobre a mesinha um pratinho de ágata cheio de pitangas. Pitangas tão vermelhinhas e tão azedas. Volta e meia, tentava vigiar minha panela, mas Sebastiana dizia: “Voltem para o lugar, quando estiver pronto eu dou”. Não sei quanto tempo durou este martírio, mas o tão esperado aconteceu. Chegou Sebastiana com a panela quentinha, colocou sobre a mesa da nossa casinha. Do caldo fez um pirão que dividiu para as três: eu, Sebastiana e Mariinha. Um banquete inesquecível que hoje, por ser agosto, lembro com muito gosto. São momentos assim... De um tempo que vai longe, mas trago dentro de mim.


O referido é verdade e dou fé.   

Conto: Momentos Assim... (Capítulo 2)






Lembro-me de uma vez em que fizemos o banquete, eu e a menininha, sobrinha de Sebastiana; poxa como fico triste de não lembrar o nome da menininha, minha única companheira... mas faz tanto tempo que eu até me perdoo.


Sebastiana voltou da feira trazendo charque, toucinho, carne-de-sol, chuchu, cravo plantado num vaso e entre tantas novidades, trouxe uma panelinha de barro e Sebastiana falou: “Comprei uma panelinha pra vocês fazê cunzinhado”. Eu, espantada com a colocação de Sebastiana, não me furtei a perguntar: “O que é cunzinhado?”. Sebastiana riu... “Cunzinhado é uma brincadeira, onde quando a mãe mata a galinha, dá de presente às crianças, o coração, as tripinhas, a moela, as asinhas, para a menininha fazer a comidinha da casa de boneca. Da tripa faz os nozinhos, das moelas os pedacinhos e quando tudo tiver pronto, vocês fazem um almocinho”. Neste dia fui pra casa e acho que nem dormi. Pensei a noite inteirinha como seria, pela primeira vez, fazer, com a permissão de Sebastiana, uma travessura tão grande, como brincar com fogo, brincar com panelinha. Amanheceu, enfim. Cheguei bem mais cedo que de costume. Sebastiana fazia o café. De longe eu sentia o cheiro. Estávamos eu e a menina ansiosas para começar. Sebastiana, eu e a menina começamos a brincar. Sebastiana foi no cercado escolher uma galinha. Eu confesso, olhei pra coitada sentindo uma dó tão grande, não tinha outro jeito, a panela estava ali, a promessa de Sebastiana, a euforia, a noite mal dormida e para nós sobraria as tripinhas, as asinhas, os nozinhos. Sebastiana disse: “Fechem os olhos, saiam daqui meninas”. Eu, desobediente, disfarcei, fingi, saí de perto, mas mantive o olhar atento. Ela pegou a coitada, prendeu-a debaixo do pé, afiou a faca na pedra e fez um “carinho injusto” no pescoço da bichinha. Pensei: “Que coisa cruel, bem que poderia ser feijão”. Fazer o que? Cardápio escolhido por Sebastiana, panelinha nova, o cenário pronto, cantinho varrido, a mesinha feita com uma pedra coberta com um pano de prato; estava feita a tal da casinha. Voltemos à galinha. A coitada soltava um gemido (crááááá... crááááá) e silenciou. Eu atenta, olhando, sem que Sebastiana visse, acompanhei o desfecho daquele gesto cruel, mas enfim, para obter tripinhas, coração, moela e asinhas, a penosa teve que se despedir. Sebastiana passou por nós, trazendo a coitada pendurada pelas pernas, o sangue desenhando o quintal de areia, deixava um rastro por onde Sebastiana caminhava. Chamei a menina: “Vamos ver de perto”... A menina tentou resistir: “Ela não nos quer lá; ela vai brigar”. Eu insisti: “Vamos, vamos, se brigar nós voltamos, se não, nós assistimos”. Para minha felicidade e espanto, Sebastiana não reclamou e eu vi, pela primeira vez, tudo que uma pobre galinha passa para virar banquete. Sebastiana arrancou-lhe as penas, quase uma a uma, e aos poucos foi surgindo uma pele lisinha e amarela, apontou a faca para o tórax da galinha e com o auxílio de um martelinho a abriu ao meio, de onde surgiram coisas brilhantes e coloridas: eram as vísceras, tripinha, coração, moelinha; material que serviria para o banquete. No meio do colorido, avistei uma bolinha de verde-esmeralda e, sem controle, disse: “Esta bolinha eu quero”. Foi quando Sebastiana disse: “Não, isto é o fel, amarga muito, estragaria o cunzinhado”. Calei-me e pensei: “Vou ficar quieta, calada, antes que ela me ponha fora daqui”. Sebastiana prosseguiu no seu ritual macabro, cantando:


“Madrugada chegou, o sereno caiu.
Meu amor de cansaço
Caiu nos meus braços
Sorriu e dormiu.
Eu só queria que não amanhecesse o dia,
Que não chegasse a madrugada.
Eu só queria amor,
Amor e mais nada”...


E nós brincávamos, enquanto aguardávamos o que seria a festa. 


Pausa para sua reflexão, amanhã continuaremos... rsrs


Bom dia!