segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Histórias para Julinha


   (Foto do meu arquivo).

Ela ouvia atentamente, enquanto degustava o ovo mexido com total desinteresse. Dedinhos frágeis, mãos expressivas, inteligência em permanente ebulição.

Seus olhos giravam e criavam imagens que aquarela alguma podia trazer de volta. Ela parecia flutuar. Ouvia atentamente... Com a mãozinha sob o queixo, olhinhos inchados, pois acabara de acordar.

– Vó, hoje é domingo?
– Gosto das manhãs de chuva.
– É tão bom estar aqui, tomar café e conversar, acordar com você...
– Nas manhãs chuvosas sinto algo que não sei dizer.
–Parece que tem uma saudade, mas também não sei do que.
– Vovó, fale da vida, conte-me sua história.
– Conte vó, conte mais.
– Você vai contando e eu vou tomar café.

Mas eu tentava, com toda dedicação de uma avó, que quer dar de presente a uma criança, uma história verdadeira. As manhãs chuvosas sempre trazem, aos mais antigos e aos pequeninos, um doce perfume que exala memórias, faz renascer histórias, faz rebuscar o que foi vivido.

Há todo um fascínio, toda uma magia que mesmo sendo suaves ou duras verdades, trazem consigo um toque de fantasia, como nos contos de fadas, um lúdico agora, que nos vem no vento, como lembrar do cheiro do café quentinho, feito no fogão à lenha, aquele pão com manteiga que, da sala, dava para sentir o perfume da manteiga, quase o crocante do seu assado e seguimos no nosso café, entre pausas e questionamentos e perguntas. Ela ficava espantada. Seus olhos amendoados e castanhos tomavam forma de interrogação.

E tudo começou, porque em algum momento, algo precisava ser contado para que ela comesse aquele ovo. Então lhe falei dos tempos da minha infância, contava-lhe como era difícil e ao mesmo tempo bela, a vida, mesmo com todas as suas dificuldades, dentro de todo um contexto que hoje só para quem prefere o simples, continua sendo bom, continua sendo vida. Perguntava-me com curiosidade natural sobre todas as suas dúvidas e eu ia lhe respondendo com a paciência das avós.


Então narrei pequenos tópicos desta minha estrada (vida), contei-lhe como eram as noites, o que faziam as crianças depois do jantar, as brincadeiras na rua. Contei-lhe que as crianças cantavam cantigas de roda, como “ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar”, contei-lhe que em minhas noites, mesmo não havendo perigo, mesmo podendo brincar nas ruas, as brincadeiras como amarelinha, garrafão e melancia, prenda e tantas outras, em algumas noites a festa era particular.

– Particular, como particular vovó?
– Particular, porque nestas noites não havia brincadeiras nas calçadas. Na sala da minha casa reuníamos com alegria, cantando e tocando. Haviam instrumentos musicais: violão, acordeon e escaleta. Fazíamos nosso próprio sarau e cantávamos as canções mais doces. Assim passávamos as noites, tínhamos nossa própria festa. Ela suspirava...

 E o seu olhar doce e meigo parecia viajar, enquanto a sua curiosidade aumentava.

– Vó, e o que se fazia quando não existia internet?
– Vó, e como passava um recado urgente, quando não tinha celular?
– Esperava, Julinha.
– Sim, vó, mas se a notícia era urgente?

Falei-lhe, então, dos telegramas, das cartas, que tantas vezes perdiam-se em sua trajetória. Perguntas quase sem fim brotaram do seu olhar, que as minhas tantas respostas não conseguiam-lhe saciar.

Julinha comeu o ovo... Rsrsrs... E como toda criança, olhou para mim, de repente, e disse:

– Vou brincar.
– Mas, vó, antes de ir quero dizer uma coisa:
– Queria tanto ter nascido em seu tempo, ser como você e saber histórias para lhe contar.

E foi arrumar as suas bonecas, distraída e feliz.

(Ednar Andrade).