segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Memória doce


  
Naquelas tardes frias, D. Zefinha cantarolava, enquanto passava a roupa. As tardes eram mornas, como uma colcha de algodão. Um cheiro perfumava o ar: carvão ou madeira no forno de lenha

Havia algo de mágico ou de conto de fadas naquela história real... Vindo da cozinha um cheiro de batata-doce cozido em fogão de lenha, tapioca que anunciavam a véspera de um café fresquinho. Lembro-me, a rua deserta, um chão de areia batido com nervuras deixadas pela enxurrada. E eu olhava pela janela com uma vontade quase incontida de tomar banho de chuva. Ah! Como eu sentia inveja da meninada molhada, descalça, jogando biloca ou desenhando peixe na areia já sequinha... Só brincavam meninos; isso não era coisa de menina. Enquanto as meninas brincavam de agasalhar as bonecas, pois pensávamos que, também elas, sentiam frio.

Havia uma rede no alpendre, com varandas tão longas, quase arrastando o chão. Meu pai, com costumes ciganos, nunca me deixou claro se eu precisava de outro mundo ou se bastava o aconchego do lar. De frente para o fogão, uma mesa disposta da forma mais rústica e simples, com canecas em ágata, com florais tatuados (canecas azuis, verdes e brancas), com bancos construídos da forma mais simples: madeiras e pregos, que meu pai fazia. Penso que ele aprendeu tal arte no seu ofício de pedreiro, pelas andanças nas obras e construções.  

Um cenário de inverno... Tardes cinzas. Íamos à gaveta, na aventura de encontrar algo mais quente e nada havia. Nordestino, naquele tempo, quase não sentia frio ou talvez, quem sabe, penso hoje, fosse a delicadeza na qual o contexto da minha família vivia que não nos deixava ter casacos como iguarias.  

Eu me encostava à mesa naquelas tardes de inverno para ouvir o que ela e minha mãe segredavam e eu usufruía do calor do ferro, enquanto Zefinha borrifava água e uma gosma fina sobre as peças que passava... Uma mistura de goma levada ao fogo e mexida, dava às peças uma textura estática, como se fosse tecido envolto em gesso. Os lençóis eram bordados por minha mãe, ao bastidor, com muito esmero, em florais azuis.

D. Zefinha passava cantarolando aquele ferro em brasa, peças e peças de linho, lenços bordados em pontos-cruz com iniciais SH, que significavam o nome do meu pai: Severino Honório. Eu não entendia porque as cuecas do meu pai mais pareciam camisolas de murim branco, tecido do qual eram compostas as cuecas dos homens e as calçolas das mulheres. Eu olhava para aquelas peças sem a certeza de que poderia fixar o meu olhar ou estava fazendo algo desaprovado pelos adultos. Na mesa de passar, as peças íntimas eram como segredos queimados e eu imaginava mil coisas.

A tarde, como um manto, ia descendo numa lentidão que, para mim, tinha algo de apocalíptico e tudo o que eu sabia é que era inverno.

Vez por outra, Zefinha largava a roupa e ia ao quintal soprar um orifício no ferro, fazendo assim com que a brasa acordasse. Meu pai acordava da sesta. Abria a boca num bocejo sonoro, tomava um café fresquinho, fazia um cigarro de palha e soltava um riso. Zefinha recolhia o cenário. Reuníamos-nos à mesa. Agora chegava a noite e um aconchego mudo juntava a família (pai, mãe e filhos) e nos levava ao salão, onde cantávamos juntos ao som de um acordeom...

Assim eram as tardes e as noites de inverno...

Penso que as famílias eram mais felizes e mais aconchegantes as noites frias.

Boa noite.......

(Ednar Andrade).