terça-feira, 29 de dezembro de 2009



Quanto mais calo, mais falo (Ednar Andrade).


Estou querendo ficar comigo, preciso por ordem nos meus pensamentos... E organizar minha gaveta da alma. (Ednar Andrade).

Saudade



    Eterna saudade do meu irmão Eli.

Esta saudade toma conta do meu sorriso.
Uma grande saudade; um eterno adeus...
A tua partida apagou meu arco-íris:
O Natal tem uma estrela a menos;
Um Natal sem brilho.
Enquanto viver, estarei morta contigo.
Não devias ter partido, era tão cedo...
És a minha eterna saudade;
És o riso que perdi;
O Adeus que não pude dar;
O abraço que não tive;
A surpresa que não gostaria de ter tido
E um deserto que ficou comigo;
Uma lágrima na garganta; uma voz que já não canta.
Todas as tardes são iguais e o Sol que te levou não te traz;
Não te verei nunca, nunca mais.
Meu coração ficou assim, como um navio:
Uma saudade à deriva;
Numa noite sem cais;
Fostes; não voltarás.

(Ednar Andrade).

Trecho do poema "Aqui"





Só aqui onde o vento balança as folhas do meu cajueiro.
Lá fora onde o mundo não existe
Aqui, o meu mundo não tem porta
Aqui, neste simples lugar, onde os meus netos me viram cantar...
Aqui, onde parece que conheço cada folha, cada caju, cada silêncio...
Aqui, onde este terraço sabe tudo que penso
Quero, depois de morta, o meu corpo descansar.


(Ednar Andrade).

Aqui





Aqui, onde não tem bonde, nem praça...
Aqui, onde tudo parece sem graça.
Aqui, onde festejo a alegria.
Aqui, onde a porta parece ser apenas porta...
Aqui onde a vida começa... e qualquer hora é morta,
Pois a felicidade habita onde poderia ser morta.
Aqui, em cada canto, em cada silêncio, em cada objeto.
Aqui, onde tudo parece ser deserto.
Só aqui sou feliz... só aqui a vida importa...
Só aqui o verde é verde... só aqui a arte não é morta.
Só aqui, no mesmo ninho... pássaros fazem ninhos.
Só aqui onde o Sol chega e... me desperta
Só aqui onde o vento balança as folhas do meu cajueiro.
Lá fora onde o mundo não existe
Aqui, o meu mundo não tem porta
Aqui, neste simples lugar, onde os meus netos me viram cantar...
Aqui, onde parece que conheço cada folha, cada caju, cada silêncio...
Aqui, onde este terraço sabe tudo que penso
Quero, depois de morta, o meu corpo descansar.
Aqui, plantei meus sonhos,
Vivi meu melhor luar
Plantei flores simples que até hoje cultivo.
Aqui vivi o meu mais lindo luar,
Aqui onde cantei as mais doces canções de ninar para os meus netos dormirem
Aqui, onde a minha alma habita quando o meu corpo não está
Aqui habitam comigo todos os silêncios, toda a alegria
Aqui, onde nasceram meus netos, onde vivi toda minha paz,
Vivi todos os meus conflitos
Aqui, onde elevo minha alma e com o coração contrito
Quero sempre estar, só aqui neste lugar
Sinto-me quem sou e onde estou, sem hora para voltar.
Aqui, onde o meu coração sempre está, mesmo que o corpo vagueie por caminhos distantes.
Aqui, onde vivi tantos sonhos, onde o inverno foi tão quente,
Onde os meus olhos viviam contentes, só aqui quero estar.
Só aqui a vida é bela, só aqui repouso a alma e o corpo já cansado.
Aqui, onde tudo parece um sonho, onde a lagoa me rega a alma,
Onde o silêncio me diz poesias, onde Julinha tem alegria,
Onde Gabriel compõe meu sonho.
Aqui, neste lugar, onde vi Bruna mamar,
Onde aprendi a tanger gado,
Onde os grilos cantam canções que nunca esqueço,
Onde os sapos contam segredos em seu coaxar das noites escuras
Onde as águas do inverno banham de poesia a minha porta
Onde o riacho derrama as lágrimas que hoje choro,
Onde o perfume das flores do  meu cajueiro me levam
Sem passaporte para sonhos tão verdadeiros
Aqui, onde Deus atendeu minha prece
E me deu como presente este lugar como abrigo.
Aqui, onde o mundo se perde e eu encontro-me comigo
Aqui, onde passo a passo, tijolo por tijolo vi nascer a o meu castelo de sonhos.
Aqui, onde a argamassa foi temperada com lágrima.
Aqui. onde o chão tem minhas digitais.
Aqui, onde a saudade nunca será a minha paz.
Aqui, só aqui, neste recanto tão simples
Sinto-me bem e sou feliz.
Nas águas desta lagoa, mornas, ternas e tão boas
Me banho e me restauro
Aqui, onde os amigos cantaram
Aqui o vinho regou a festa,
Aqui , onde tudo calo, onde tudo sei, onde nada digo,
Aqui é o meu abrigo.
Aqui, onde vivi com meu irmão uma grande comunhão de amor,
Onde eu o escutava e aqui, eu e Eli tão sós e por sermos sós, ficávamos
Aqui, onde as mangabas perfumavam as manhãs,
Onde os sabiás cantavam uma canção tão linda, tão bela, tão singela.
Aqui quero viver, aqui quero morrer,
Entre a lagoa e o mar, ser apenas Ednar,
Mulher feita para amar.

(Ednar Andrade).

Cântico Negro




"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"



(Poema de José Régio interpretado por Maria Bethânia).