sábado, 31 de outubro de 2009

O Amor





Parte I
E porque havia o Amor,
Nada era em demasia.
Cada qual com seu valor,
Nada, nada se excedia

A mão estendida ao homem;
O abraço dado no amigo;
O pão para quem tem fome;
O que é joio, o que é trigo.

A seiva vinda da alma;
O óbulo do fariseu;
A doce música que acalma;
O que é meu, o que é teu.

O sonho sonhado só;
A vida vivida junto;
A estreiteza da mó;
A força de um conjunto.

O nascimento da flor;
A correnteza do rio;
O surgimento da dor;
As ondas no mar bravio.

A estrela a brilhar no céu;
O vento em torvelinho;
O artista com seu pincel;
A sutileza do carinho.

A mão que cuida da chaga;
A rosa com seu espinho;
O doce olhar que afaga;
A galinha com seu pintinho.

O inefável som de um canto
A tarde beijando o dia
O triste ouvir de um pranto
O tempo de uma agonia.

A chuva roçando a terra;
A ave em migração;
A estupidez da guerra;
A frieza do canhão.

O dócil tocar do sino;
A luz na escuridão;
O orvalho matutino;
O estrondo do trovão.

Parte II


A semente que cai na terra;
A ternura do luar;
A imponência da serra;
A flor ao vento a bailar.

Tudo tinha tempo certo,
Tudo tinha sua medida,
Quando o amor descoberto
Regia tudo na vida.


*Meu poeta* (Zé da Silva). 

Sol


És o Sol,
Amo você e isso é lindo,
Passarei o dia pensando em nós.
Te carrego no peito...
Estás sempre comigo,
Mas não demores:
O tempo é irmão do vento!
E já nos distancia muito;
Não devemos adiar.
Amo-te, quero-te
- Como te espero a cada amanhecer! -
Meu coração, hoje, tem o movimento das ondas;
O Sol é lindo, não descanso enquanto aguarda vê-lo
E encontrá-lo nas manhãs...
Meu coração está pleno de ti,
Estou plena de ti.
A manhã está fosca;
Há um brilho no céu,
Uma pequena luz, vinda do Sol,
Quero ser o Sol da sua vida,
Quero poder caminhar nestas manhãs contigo
E sob esta luz, sentir a espuma das águas
Ter bordado o nosso amanhecer.
Nosso dia mais feliz será aquela manhã
Que virá tão quente e radiante
Que queima como o fogo
Ardente de uma paixão!

(Ednar Andrade)*****

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Criança



Ser criança é viver vidas,
Com muita cor, muito sabor
De manhã ser o herói
De tarde o professor
E quando ela passar na rua
Ir descobrindo o amor
É ser médico, ser artista
Cantando aquela canção
É acreditar que o mundo
Foi feito pra diversão
É correr de pés descalços
Na chuva que vai caindo
Encharcar o corpo e a alma
Voltar pra casa sorrindo
Entrar pela casa a dentro
Sonhando que é gota d´água
Correr para os braços da mãe
Ainda escorrendo água
Ser criança é ser humano
É riso, festa, carinho
É sonho acontecendo
Aos poucos, devagarinho
É construir castelos na areia
E ser rei e ser rainha
Travar batalhas ferozes
Vestidos com carapinha
Bom, o dia tá indo embora
A noite já se avizinha
È hora de ir pra casa
Boa noite, minha amiguinha!

*Meu poeta* (Zé da Silva)






Mar

Então vem, pois já a vida é quase noite
Já a minha saudade não cabe em mim,
Já não penso; DELIRO.
Não sonho; morro.
E o vento murmura um canto triste ao meu ouvido.
Ai que saudade do mar ...
Do cheiro das algas,
Nas Manhãs do meu lugar ...
Ai que esta saudade fica maior ainda,
Quando penso em te encontrar.
Ai o mar que, de amor, não finda,
Sempre te encontrarei lá
Nos barcos, nas velas, nas ondas,
Onde quer que eu vá
Março



(EDNAR Andrade )*****

*Meu Menino*


*Meu menino*





Você era o meu menino mais menino, aquele que me fazia graças, me cantava uma canção, me olhava fundo nos olhos; lia o meu coração... E calava... Fazia pausas tão longas... Que eu me esquecia da dor, só para pensar no seu amor. Um amor... Tão puro... Vindo dos seus gestos nas horas de lucidez; você me chamava (maninha), sorria pra mim tão feliz e eu te compreendia, calava também, numa cumplicidade que só a nossa loucura ou a nossa alegria conhecia.
Mas você partiu. Assim, de repente, numa noite tão fria me deixou sem sorriso e sem alegria e uma cadeira vazia. De você ficaram: as lembranças, minha dor... E para sempre, uma nostalgia; uma presença que sinto nas coisas mais sutis, uma canção que, ao longe, ouço no rádio, nas manhãs de domingo, nos fins de tarde, naquele papo no terraço, onde ali estavam presentes apenas o vento e os nossos sonhos e recordávamos com tanta ternura nossa infância, nossa família, as brincadeiras de menino, as aventuras - doces aventuras! - como subir nas árvores, para colher os cajás, que os galhos da árvore vizinha nos ofereciam, doces frutos, quantas travessuras... Mas, também tantas lembranças de momentos duros em que nós, hoje, transformávamos em papos alegres - e como ríamos! - e o confortável desta conversa era tê-lo ao meu lado, agora homem com ares de menino, uma meiguice não tão transparente para alguns.
Para fazer tua leitura sempre foi necessário Filosofia, Arte, sentimentos e sentimentalismo. Um coração de menino, voz de homem. Eterno sonho, eterno sonhador, envolto nos encantos da sua fantasia. Foste feliz no teu mundo de sonhos. Fizemos tantas viagens, embalados pela brisa das frias tardes e na solidão do inverno dos que amam o que não é amado; dos que compreendem o que não é falado; dos que sentem o que não é sentido; dos que desejam e não são desejados; dos que doam, mas não lhes dados olores em forma de amores. Sinto saudade; não sinto tristeza, pois a saudade é o sentimento que mais aproxima os que se amam; a saudade é a ponte que mantém unidos os corações; a saudade é a canção inevitável dos que dizem adeus ou apenas dos que amam sem ter perto o objeto amado. Vivemos assim: lado a lado... Silêncios falados, amor sem par. Companheiros de tantos invernos. Fomos cobertores um para o outro, naqueles momentos em que a alma tremia no frio do medo, diante do que estarrece... e uma gratidão que só nossos corações conhecem; fomos felizes. Vivemos um amor que não morreu. Você partiu e me deixou um legado: a certeza de que amamos, mas nem sempre somos amados. De nós, sei com certeza que o amor foi o nosso maior elo. Você foi o meu poeta; o filósofo, por mim, mais lido; o meu cantor; o meu artista preferido; o meu irmão mais velho; o meu menino mais menino; o meu palhaço preferido; a ovelha que não era negra; o profeta; um mix de tudo no amor traduzido.
Você me deixou, mas ainda ouço tua voz, ainda canto contigo. Você me chega às vezes numa manhã... Na canção que cantam as folhas do cajueiro; no Sol que bate na janela do teu quarto; numa cadeira que alguém, por descuido, esqueceu num canto, onde quando, com saudade, deito e durmo, como para te ouvir, como para te sentir mais perto; numa espreguiçadeira que era a tua cama preferida. Ali sentavas, distraído, sem se preocupar com o tempo... Eu, ao teu lado, te olhava, querendo adivinhar que mistério tinha teu olhar naquele instante e neste momento pairava sobre ti uma magia; uma doce inspiração; um segredo tão teu que ninguém pode saber; que pensamentos te rondavam e te faziam tão sério e naquele olhar profundo guardavas a vida em silêncio dos que gritam e não são ouvidos. Por tudo isso, nos amamos, conhecíamos o meu e eu o teu silêncio e na prece, que continha este silêncio, cada um era seu... (Ednar Andrade)*****


(Primeira Parte do Texto).

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Silêncios...


Dos Silêncios



Assim, como uma canção, um grilo a cricrilar inesgotavelmente, sem rima, sem trova, apenas canta... E soa ao meu ouvido; soa como um verso em que medito e não choro, pois a melodia me fala da noite, do silêncio, e "dos silêncios... Que trago no peito."
Assim, como no peito trago também, amores... Vários amores... São amores... São, sem temores, felizes ou vãos... Agora sinto um cheiro de fruta fresca vinda da pêra que saboreio um “cheiro" sem descrição da taça do vinho na minha mão. Um devaneio sem razão, um perfume em tudo na minha imaginação...

Somente quem sabe canta... O verso desta canção da noite, que mora em mim... Dentro da verdade de cada coração, além do meu... 

Mas, além... A noite desfia uma brisa. Quem sabe eu cantaria ao toque do violão: *"meu coração, não sei porque, bate feliz quando te vê...”

(Ednar Andrade).

Em cada história um papel


Eu olhava atenta os meninos sentados, unidos. Como mudaram... Cresceram...
Mudanças visíveis na voz, nos gestos, nas palavras e também no destino de cada um, ou não seria?... Ou não é destino???
Fiquei olhando e tentando rebuscar a fisionomia deles.
Não havia para mim dificuldades, pois eu os vi pequenos, correndo, felizes, saltarem nos galhos nos rios, pescando...
Mas e agora? Agora que tudo mudou, que eles já não brincam tanto?
Suas vidas caminharam por estradas tão distantes, seus sonhos feitos das tardes de verão, seus sabiás na lagoa, seus barquinhos de papel, peneira na mão, esperando passar na correnteza pequeninos camarões, as escaladas nas montanhas... Entravam na mata com suas gaiolas, com a inocente felicidade de trazer consigo pássaros cantantes. E quando a noite era de luar, acendiam tochas, apenas para andar na escuridão da mata e fingirem-se guerreiros, heróis. Confeccionavam suas armaduras e acessórios, assim como a lanterna de lata, onde uma lata de leite vazia, com um barbante que formava um aro, trazia dentro uma vela acesa e não temiam as cobras, nem os perigos da noite. Inevitável olhá-los, sem perceber neles e em mi a distância que o tempo fez em cada um de nós. 
Agora tudo passou, o verão ficou distante, e eles se olhavam e se faziam perguntas. Ansiosos como que quisessem voltar aos sonhos, à infância que se despede de um modo tão cruel, afastando, às vezes, pessoas que se amam tanto.

Cada um na sua história e em cada história um papel. Sentados ali ficaram a falar... Sorriam... Silenciavam... Eu os via... Sem que soubessem que eu, expectadora daquele encontro, sorvia com alegria e com nostalgia... A aparência de homens e na cabeça ainda meninos, relembrando os sorrisos dados, abstraídos nas suas lembranças frescas, eles olhavam-se com um carinho daqueles que crescem juntos e agora separados, reencontram-se numa tarde para mergulhar no passado.  
Enfim, esqueceram as diferenças, e como eram crianças brincaram, esquecendo as dores.

*(Ednar Andrade).

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Amor sem medida




O meu amor não tem medida
Tem somente este sentir
Tem somente esta impressão sutil
Este toque, este gosto, este gesto
Leve, muito leve
O meu amor quando chega
Traz consigo a percepção do sensível
Tênue sensação imponderável
Branda, doce, suave
O meu amor não tem medida
É maior do que eu
O meu amor não cabe em mim.



*Meu Poeta*(Zé da Silva)

Menina




"Menina dos versos meigos
Mulher dos versos revoltos
Teus versos são pássaros soltos
Que cantam e celebram a vida
Que entoam e traduzem a alma
Que falam ao meu coração
Com o cheiro, o calor, o toque
Perfumados de sentimento
Encantando-me com teu mundo
Um mundo de faz de conta
Onde os teus poemas, carinho,
Os teus poemas, meninos,
Correm de pés descalços
Chispando a água das poças
Cheios de afeto e meiguice
Escritos com a brejeirice
Que só a flor é quem tem".



*Meu poeta* (Zé da Silva).

Espelho d'alma



"Nas horas longas
da noite, longa e fria
Busco-me, em espelhos,
em uma busca vazia.

Espelhos?
Que sabem de minha alma?
O que é que sabem de mim?
Se lhes mostro a face calma
Me dizem que sou assim

Só imagens evanescentes,
só sombra refletida
traiçoeiras como serpentes
que nada dizem da vida

Da vida real do 'Eu'
Da alma aprisionada
Num corpo que lhe tolheu
Que lhe mantém limitada

A alma assim dominada
Pede mergulho profundo
Para vencer as arcadas
Que dão acesso a seu mundo

Transpostas estas arcadas
Que são guardiãs do saber
Vencidas as emboscadas
Que se escondem em querer

A alma, então, se revela
Deixando transparecer
O “Eu” que sai de sua cela
E é o verdadeiro ser".



*Meu Poeta* (Zé da Silva).

Voz do Amor



"O amor cantava ao longe
Triste canção que dizia
'Quem eu amo foi embora
Levando minha alegria
Deixando só a saudade
A sufocar os meus dias...'
E quem ouvia o amor
Cantando esta canção
De certo se perguntava
Amar,
é liberdade ou prisão?
Assim como vem se vai
Dando conta à solidão
E o amor que cantava
Tão débil ia ficando
Que aos poucos só se ouvia
O sôfrego amor soluçando
E as lágrimas que lhe desciam
Aos poucos iam apagando
A triste voz do amor
Que ia se debelando
A soluçar sua canção
Cujos versos vão ensinando
Que por maior que seja a dor
'Amar só se aprende amando'”.



*Meu poeta*(Zé da Silva)

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Conto: Momentos Assim... (Capítulo 3)






Sebastiana achava tudo normal, enquanto eu a achava cruel e fria e tinha medo de uma pessoa que matava cantando. Enfim, pedaços para todos os lados: coxinhas, pezinhos, etc. E, numa tigela de porcelana verde, ali estava tripinhas e afins. Sacrifício feito, sonho quase concluído; vamos ao cozinhado. Sebastiana reservou numa panela de barro a porção que seria o almoço dos adultos. Pegou as vísceras, os presentinhos que nos deu para o cozinhado, limpou, tratou, esvaziou as tripinhas, passou limão, vinagre, deixou num molho acre. Depois, não sei quanto tempo, lavou tudo, colocou todos os temperos. Fez ali no terreiro um pequeno fogo, menor que aquele que ela fazia na casa dela, pois tratando-se da panelinha, tudo seria no diminutivo. Senti-me uma dona de casa. Fazíamos ali eu e Mariinha, nome que criei agora, pois não agüento mais citar uma pessoa sem nome, nosso primeiro cozinhado. Surgia daquela panelinha, um cheiro maravilhoso de galinha caipira, era um misto de pimenta-do-reino, alho e cebolinhas. Hummm... o manjar estava a caminho. Sebastiana, volta e meia, vinha até nós. Na verdade o que eu queria mesmo era mexer na panela, coisa que ela não deixava. Queria repetir o gesto dela, tomar o caldinho sem dividir, mas ela não deixava. Eu me socorria com um pensamento: “Quando estiver pronto não dou. Feijão dela; galinha minha”. Grande engano meu, Sebastiana foi quem mais comeu.


Enquanto a galinha cozia, eu e Mariinha, entretidas no quintal, varríamos a casinha, com uma vassoura feita de cacho de coqueiro (ou palha, se não me engano). Preparávamos a casa para a festa, a casa que já citei: um canto debaixo do cajueiro, varrido, aquele incenso natural vindo das flores que às vezes eu amassava só para sentir o cheiro. Coloquei sobre a mesinha um pratinho de ágata cheio de pitangas. Pitangas tão vermelhinhas e tão azedas. Volta e meia, tentava vigiar minha panela, mas Sebastiana dizia: “Voltem para o lugar, quando estiver pronto eu dou”. Não sei quanto tempo durou este martírio, mas o tão esperado aconteceu. Chegou Sebastiana com a panela quentinha, colocou sobre a mesa da nossa casinha. Do caldo fez um pirão que dividiu para as três: eu, Sebastiana e Mariinha. Um banquete inesquecível que hoje, por ser agosto, lembro com muito gosto. São momentos assim... De um tempo que vai longe, mas trago dentro de mim.


O referido é verdade e dou fé.   

Conto: Momentos Assim... (Capítulo 2)






Lembro-me de uma vez em que fizemos o banquete, eu e a menininha, sobrinha de Sebastiana; poxa como fico triste de não lembrar o nome da menininha, minha única companheira... mas faz tanto tempo que eu até me perdoo.


Sebastiana voltou da feira trazendo charque, toucinho, carne-de-sol, chuchu, cravo plantado num vaso e entre tantas novidades, trouxe uma panelinha de barro e Sebastiana falou: “Comprei uma panelinha pra vocês fazê cunzinhado”. Eu, espantada com a colocação de Sebastiana, não me furtei a perguntar: “O que é cunzinhado?”. Sebastiana riu... “Cunzinhado é uma brincadeira, onde quando a mãe mata a galinha, dá de presente às crianças, o coração, as tripinhas, a moela, as asinhas, para a menininha fazer a comidinha da casa de boneca. Da tripa faz os nozinhos, das moelas os pedacinhos e quando tudo tiver pronto, vocês fazem um almocinho”. Neste dia fui pra casa e acho que nem dormi. Pensei a noite inteirinha como seria, pela primeira vez, fazer, com a permissão de Sebastiana, uma travessura tão grande, como brincar com fogo, brincar com panelinha. Amanheceu, enfim. Cheguei bem mais cedo que de costume. Sebastiana fazia o café. De longe eu sentia o cheiro. Estávamos eu e a menina ansiosas para começar. Sebastiana, eu e a menina começamos a brincar. Sebastiana foi no cercado escolher uma galinha. Eu confesso, olhei pra coitada sentindo uma dó tão grande, não tinha outro jeito, a panela estava ali, a promessa de Sebastiana, a euforia, a noite mal dormida e para nós sobraria as tripinhas, as asinhas, os nozinhos. Sebastiana disse: “Fechem os olhos, saiam daqui meninas”. Eu, desobediente, disfarcei, fingi, saí de perto, mas mantive o olhar atento. Ela pegou a coitada, prendeu-a debaixo do pé, afiou a faca na pedra e fez um “carinho injusto” no pescoço da bichinha. Pensei: “Que coisa cruel, bem que poderia ser feijão”. Fazer o que? Cardápio escolhido por Sebastiana, panelinha nova, o cenário pronto, cantinho varrido, a mesinha feita com uma pedra coberta com um pano de prato; estava feita a tal da casinha. Voltemos à galinha. A coitada soltava um gemido (crááááá... crááááá) e silenciou. Eu atenta, olhando, sem que Sebastiana visse, acompanhei o desfecho daquele gesto cruel, mas enfim, para obter tripinhas, coração, moela e asinhas, a penosa teve que se despedir. Sebastiana passou por nós, trazendo a coitada pendurada pelas pernas, o sangue desenhando o quintal de areia, deixava um rastro por onde Sebastiana caminhava. Chamei a menina: “Vamos ver de perto”... A menina tentou resistir: “Ela não nos quer lá; ela vai brigar”. Eu insisti: “Vamos, vamos, se brigar nós voltamos, se não, nós assistimos”. Para minha felicidade e espanto, Sebastiana não reclamou e eu vi, pela primeira vez, tudo que uma pobre galinha passa para virar banquete. Sebastiana arrancou-lhe as penas, quase uma a uma, e aos poucos foi surgindo uma pele lisinha e amarela, apontou a faca para o tórax da galinha e com o auxílio de um martelinho a abriu ao meio, de onde surgiram coisas brilhantes e coloridas: eram as vísceras, tripinha, coração, moelinha; material que serviria para o banquete. No meio do colorido, avistei uma bolinha de verde-esmeralda e, sem controle, disse: “Esta bolinha eu quero”. Foi quando Sebastiana disse: “Não, isto é o fel, amarga muito, estragaria o cunzinhado”. Calei-me e pensei: “Vou ficar quieta, calada, antes que ela me ponha fora daqui”. Sebastiana prosseguiu no seu ritual macabro, cantando:


“Madrugada chegou, o sereno caiu.
Meu amor de cansaço
Caiu nos meus braços
Sorriu e dormiu.
Eu só queria que não amanhecesse o dia,
Que não chegasse a madrugada.
Eu só queria amor,
Amor e mais nada”...


E nós brincávamos, enquanto aguardávamos o que seria a festa. 


Pausa para sua reflexão, amanhã continuaremos... rsrs


Bom dia!