domingo, 25 de outubro de 2009

Prece


Senhor, que és o céu e a terra,
Que és a vida e a morte!
O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu!
Tu és os nossos corpos e as nossas almas 
E o nosso amor és tu também.
Onde nada está tu habitas 
E onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. 
Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, 
Ouvidos para te ouvir no vento e no mar, 
E meios para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu.
Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos
Nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos.

Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos
E servir-te como a um pai.

Minha vida seja digna da tua presença.
Meu corpo seja digno da terra, tua cama. 
Minha alma possa aparecer diante de ti 
Como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, 
Para que eu te possa adorar em mim; 
E torna-me puro como a lua, 
Para que eu te possa rezar em mim; 
E torna-me claro como o dia
Para que eu te possa ver sempre em mim
E rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me.
Dá-me que eu me sinta teu. 
Senhor, livra-me de mim. 


(Fernando Pessoa. Texto Extraído de "O Eu Profundo").

2 comentários:

  1. Oi, Edna! Sou eu, Mônica.
    Passei pra dizer que adorei seu blog. Foi como olhar em sua alma. Fabuloso como se estivesse lendo uma história encantada.
    Te adoro sempre. Beijo.

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  2. Como você é uma fã de Pessoa reresolvir deixar-te esta do que fazer comentários. . . mas esta muito bom.
    Max
    Mestre, meu mestre querido!
    Mestre, meu mestre querido!
    Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
    Vida da origem da minha inspiração!
    Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

    Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada.
    Alma abstracta e visual até aos ossos,
    Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
    Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
    Espírito humano da terra materna,
    Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

    Mestre, meu mestre!
    Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
    Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
    Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
    Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

    Meu mestre e meu guia!
    A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
    Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
    Natural como um dia mostrando tudo,
    Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
    Meu coração não aprendeu nada.
    Meu coração não é nada,
    Meu coração está perdido.

    Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
    Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
    Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
    Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
    Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
    Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
    Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
    Pela indiferença de toda a vila.
    Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
    Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
    Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
    E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém
    Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
    Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
    Porque é que me chamaste para o alto dos montes

    Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
    Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
    Como quem está carregado de ouro num deserto,
    Ou canta com voz divina entre ruínas?
    Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
    Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

    Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
    Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
    Que poderia ao menos vir a agradar,
    E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
    Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

    Feliz o homem marçano,
    Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada.
    Que tem a sua vida usual,
    Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio.
    Que dorme sono,
    Que come comida,
    Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

    A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
    Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
    Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.
    15-4-1928
    Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
    - 31.

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