sábado, 14 de novembro de 2009

Memórias da infância






Lembro-me de um tempo onde ser criança não era diferente de fazer parte de um conto de fadas; um tempo onde as ruas ainda não tinham os postes iluminados com lâmpadas fluorescentes ou de mercúrio. Ouviam-se apenas os grilos à noite, o coaxar dos sapos ou a ópera das pererecas na noite.

As ruas eram sem asfalto... Lembro-me de um barro vermelho, onde, vez por outra, os jipes - que eram os carros mais comuns da minha época – atolavam. Eles eram quase tratores e mesmo assim perdiam-se, atolavam naquele barro. Isso fazia o evento do dia. A meninada anunciava um ao outro o acontecimento e todos saíam para assistir, o que, para nós, era uma festa; para os adultos um sofrimento. A meninada torcia para que o carro atolasse, faziam elos com os dedos para que os carros afundassem cada vez mais... Isso não caracterizava maldade; era a única distração.

Outra lembrança linda de tantos contos de fada, porém com a conotação verdadeira, pois descrevo aqui apenas fatos reais, é ir cedinho ao curral de “seu João” pegar um leite quentinho. João Lopes era um senhor calado, simples, quase bizarro, chapéu escondendo os olhos, camisa da cor da calça, falava pouco, um tanto assustador, para a minha imaginação de criança. Mas ali eu me perdia, esquecia o leite, colocava a garrafa na calçada, ia correr atrás das vacas, observar os bezerros que mamavam; um cheiro de estrume no ar, aquilo era como perfume. O cheiro do feno; as cocheiras; o mugido dos touros; o eucalipto que formava um tapete... Eu sentava ao lado do Wilson, o moço que tirava o leite; sentava impaciente com uma certa dó da vaquinha, via o Wilson espremer as tetas da vaquinha e  a coitada mugia: mummm. Hoje não sei se era dor ou se era um mantra. Sei que de lá não saía leite sem emoção. Enquanto em casa a minha tia, talvez já impaciente, esperava sentada o leite, porque ali eu me perdia.

Aquilo tudo era meu mundo... Andar descalça, pisar no cocô quentinho das vacas, eu fazia por prazer... Lembro-me do mel de furo, uma substância tirada do melaço da cana, que as vacas comiam com prazer; os vaqueiros chamavam de torta. Eu daria tudo para lamber. Daquilo saía um cheiro... Era uma tentação, uma danação, um assédio, lamber, saber que sensação de prazer a vaca via naquilo. João Lopes dizia: “Vai pra casa menina. Entrega o leite a Anália e volta pra brincar”. Eu ia, então, chateada; voltar é que não podia, pois já encontrava pisando nos cascos, ralhando e dizia: “Amanhã tu não vais pegar o leite; vou eu no teu lugar”. Nossa isso era uma sentença!

Amanhecer, não pode ir ao curral, não poder brincar com as sementinhas caídas dos eucaliptos, não pegar as folhas ainda quase verdes, amassá-las só para sentir o cheiro, seria pior do que prisão... Então eu jurava: “Tia, prometo, amanhã vou, demoro não”. Ela me olhava assim, com um olhar de quem sorria e dizia: “Ednar, eu te conheço. Amanhã, você vai não!”. Eu dizia: “Deixa tia, por favor, deixa tia”. Negócio feito; eu sempre vencia.

Lá mesmo, na casa de “seu João”, D. Zefinha, sua esposa, foi minha professora. Minha tia alegava que era preciso aprender o bê-á-bá, momento de grande alegria, ia estudar na casa de D. Zefinha, ficar perto das vacas, correr atrás das borboletas. Eu as segurava, colocava num vidrinho e só na hora de voltar para casa, as soltava. Tudo muito lindo! Uma infância colorida, rica de emoção. 

E lá estava eu no meio dos bichos, magrinha, correndo, feliz, saltitante, cabelos compridos, tranças... Lembro que uma certa vez, como Narciso, me vi no espelho pela primeira vez, e foi aí que notei que não precisava mexer nos batons de minhas tias; minha boca era muito vermelha!

Bem, ia eu todos os dias, com um caderno e um lápis e uma borracha na ponta do lápis grafite, aprender a escrever (b+a= ba; b+e= be...) rsrsrs... Havia um momento mágico, um tal de ir à casinha, que era ir ao banheiro e lá eu ia e vinha, só para fugir do bê-á-bá.

Acordar era sempre uma felicidade... Enfim, eu ia estudar.

Nos fins de tarde, menina bem cuidada, cabelos limpos, perfumados, saía com meu tio Jair, para comprar pão quentinho na venda de “seu Adelson”... hummmm... que coisa maravilhosa: bolinho, pirulito, alfenim, biscoito champagne, pão doce, suco de maracujá, lá tudo isso tinha. E eu, sandália de dedos, shortinho colorido, laços de fitas no cabelo, saía de casa ouvindo uma recomendação: “Tem cuidado Jair, para essa menina não rolar no chão”, tia Anália dizia. Ele, grande cúmplice das minhas travessuras, era o primeiro a me incentivar e com todas as letras que agora escrevo, ele dizia: “Rola Ednar! Eita cabritinha!” O conselho de tia Anália soava ao contrário, com certeza eu voltaria produzida ao meu modo: pés descalços, roupa suja e pé no chão. Livre... rebelde, não.   

Voltava sempre de mãos cheias, colhia na ida e na volta flores silvestres, que encontrava pelo caminho: flores azuis, amarelinhas, brancas, lilases e, ainda, sorvia a aguinha acumulada nas conchinhas das flores. Este sabor, não esqueço. No tempo eu não sabia, mas hoje sei: era um misto de poeira e água morna; um chazinho da natureza, um chazinho de flores... Uma satisfação, uma sensação, sem preço, de liberdade.

Acabavam, assim, quase sempre, as minhas lindas tardes.

Continuarei na próxima postagem.

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