terça-feira, 25 de maio de 2010

Fins de tarde



... E à tardinha... Eles voltavam. Passavam em minha porta, chapéus rasgados, pés descalços, cigarro de palha... Um a um, olhavam para o meu sisudo pai que ali estava sentado em todos os finais de tarde, como quem fazia uma oração, postado à porta. Uma velha cadeira, como que saudando à tarde. Lembro-me do muro da minha casa, pintado em amarelo... Janelões protegidos por grades de ferro... De frente para o pôr-do-sol. Rua de areia, não havia asfalto e lá eles vinham... Eram os pescadores, que voltavam para o lar... Passavam um a um, nos cumprimentavam, com uma reverência incomum: - boa tarde, senhor! – boa tarde, sô – meu pai respondia.
 
Era um ritual que antecedia a Ave Maria de Gounod. Eu recostada no muro, achava maravilhoso aquele calor, para ver a tarde cair. Lá da cozinha, um perfume exalava... Batatas-doce, uma boa carne assada na brasa; um banquete nos esperava... Tia Zefinha, uma boa senhora que nos criou, companheira das lutas domésticas, fazia o café. Aquilo era como um incenso que sinalizava a noite... Meu pai, homem forte... Musculoso, bonito, cabelos lisos, bem-humorado – herdei dele o riso... Homem sério, homem calado. Parece que tinha o saber, para mim ele era o livro – havia nele um mistério, eu não conseguia ler. Mas era lindo o anoitecer. Ás vezes, ouvíamos um som, era o sinal, um aviso de que o navio aportado anunciava a partida. E ele me dizia sábio: “o navio está indo embora”. Relatos da minha vida, partes da minha história.
 
Este homem mudo e tão calado e falava dos astros, das estrelas, das estrelas cadentes e eu ficava contente; de tudo que ele dizia, era eu crente. Momento que não esqueço e quando assim, de repente, ouvia no rádio a canção mais bela, que até hoje escuto: “Ave... Maria... Maria, Maria...” Então minha mãe chegava à porta e anunciava o jantar. Ali começava uma ceia, meu pai, minha mãe, meus irmãos... Era uma comunhão que o tempo não vai apagar.



(Ednar Andrade)*****

2 comentários:

  1. Ah! a prosaicidade da memória... As lembranças da infância... Quanta beleza neste texto. Dá para imaginar os lugares e pessoas. Magnífico! Belo! Aplaudo de pé!

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  2. Converter em poesia as reminiscências da infância, é uma arte franqueada a poucos seres iluminados para tanto.

    A poetisa demonstra fazê-lo com maestria e desenvoltura, próprias dos grandes mestres. Os finais de tarde ganham, no texto, contornos tridimensionais, posto que ganha uma textura, uma coloração,um som, em suma, conseguimos visulizar, conforme disse Inkeri acima, as pessoas e lugares.

    Magnífico e magnânimo, posto que generoso com os leitores.

    Parabéns!!

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