quarta-feira, 27 de abril de 2016

Instante


Não faz tanto tempo, ela feliz sorria, dizendo loas, cantigas santas: uma menina sempre…

…A noite amanhece e sempre, ou quase sempre, nada é diferente, exceto o meu olhar cansado que fica cada vez mais noturno e sem solar luz. …

Vejo através das grades da minha prisão domiciliar, onde o meu exílio mora. O meu amor também escorre feito leito de rio e se esvai sem precisar exatamente dizer-me com palavras: “adeus”

Madrugadas sonolentas e frias são um eterno estado de torpor e medo.

A descrença da carne é cruel, o desalinho dos sonhos um temporal de interrogações e de palavras que me fazem desconfiar das muitas convicções, o amor me é real neste despencar do calendário, silenciosamente me adentro e quase nada encontro do que antes pensava haver, a certeza da mais triste visão varre de mim a vontade de sorrir. Minha boca tem um fel que me faz companhia, somente o barulho dos motores dos carros apressados dá-me a noção de que a vida lá fora tem movimento e sons.

Cá de dentro da minha dor, ouço mantras de agonias, ouço pausas nos calados segredos das horas e penso, penso em tudo que adormece em meu ser, enquanto num gesto de conformação e de constatação nunca acordo; levanto-me apenas, entendo que o fim permeia o instante . E ela parte a cada novo dia, e me deixa cada dia mais só.

Há uma semelhança no que vivo neste eternal e bisonho, com a maternidade: toda mulher é feliz por carregar no ventre vida; mesmo sabendo que nada sabe do assombroso instante da explosão do nascimento.

…E lembrando Cristo na sua angustia e medo da morte dizia ao pai: senhor se possível afasta de mim este cálice. Assim também eu temo aquele instante em que verei seu último suspiro.

Há um coquetel de amor e de pavor na maternidade em seu final, assim como na espera da hora em que se aproxima com passos lentos e sutis a morte de um grande imensurável ser que tanto amamos.

Olhando para o leito, como quem olha para a cruz, vejo uma vida em torturado sacrifício morrendo sem glórias, sem louros, sem honras, lembro-me de Jesus, que por todos deu a vida assim crucificado, braços estendidos mãos e pés atados, sofrendo sangrando. Sagrado.

E nas vírgulas das noites, e nas reticências das tardes, inda lembro seu sorriso que mora no ponto final deste nosso amor sagrado.

Sagrado seja este olhar que já não fita o meu cansado, sagradas sejam suas mãos, enrugadas, trêmulas e quentes, sagradas sejam as carícias que delas sinto ao roçar a pele frágil entre os dedos encrespados de dor, são mãos mortas são, sem gestos, sem pecados, bendito seja eterno, este amor tão lindo que me deu toda vida, assim rezo.

O amor é a força que faz forte um homem cansado. O amor é o infinito sentido do que ainda resta, uma linha curva com reta final ao silenciar de tudo.

(Ednar Andrade).



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